Serviço. 11 meses de serviço. Parece cada vez mais complicado definir esta palavra. Complexificou-se de uma tal forma que já é difícil perceber onde acaba o serviço e começa a Francisca. Não porque seja uma pessoa espectacular que consegue desprender-se das suas necessidades em prol de um bem maior qualquer, nem por nenhuma outra razão dessas honrosas que nos evocam pessoas verdadeiramente boas. Sou completamente egoísta na escolha da minha profissão e do meu projeto de vida: faz-me feliz, extremamente feliz. Por isso não sei onde acaba e começa o quê.
Durante estes 11 meses trabalhei com bebés, crianças, famílias, no centro, na rua, na escola, discuti a escravatura durante semanas, fiz um atelier sobre a discriminação,... Estive na zona parisiense durante o ataque ao Charlie Hebdo e vi em primeira mão o sofrimento, a revolta e o medo que se instalou na comunidade muçulmana em Clichy-sous-Bois pelas consequências de um ato que não foi em seu nome. Fiz milhares de perguntas que me foram sempre respondidas com carinho e paciência, com muita compreensão. Aprendi sobre a vida nas margens de todos os poderes, e o fascínio pelas minorias cresceu tanto mais em mim que sinto que tenho que voltar para a escola para poder digerir tudo o que aprendi. Este ano fui portuguesa! (o meu sotaque denunciou-me, enfim, a origem), inglesa, argelina, marroquina, brasileira, caboverdiana,... Visitei os dois extremos da Europa por amor. Entrei no mestrado numa cidade incrível, que ainda dou voltas à cabeça para saber como me vou safar do facto de ser numa língua que mal comecei a dominar.
E hoje fiz a minha última animação de rua. Estive a pensar qual
seria o cenário ideal para a parte de trás do Orange Bus, o nosso novo “centro
móvel” que é basicamente um camião (parece que não é grande o suficiente para
ser um camião, mas é o que lhe chamamos). A parte de trás é uma sala vazia onde
podemos criar todo o tipo de ambientes, à medida do nosso público. O
público era pequenino: escolhi um quarto de bonecas e um mercado para comprar
tudo o que é preciso para tomar conta dos bebés. (Não tirei fotos, mas
deixo-vos a cozinha, de uma outra animação e uma animação de leitura).
As crianças do bairro onde nos instalamos, e as dos bairros
vizinhos, já sabem que à sexta-feira trazemos jogos (as quartas são reservadas à
leitura) e vão aparecendo, normalmente em grupos, às vezes com adultos a
acompanhá-las, para brincar connosco. Perto estavam as habituais vendedoras de
gelados em sacos de plástico (10cts o gelado) e de pastéis (20cts o pastel, com
molho de tomate a acompanhar). O Orange Bus começa a ser reconhecido, e o meu
nome é gritado com sotaque francês umas dezenas de vezes – mal posso acreditar
que não vou voltar a escolher um cenário para o camião. Lá, no meio do bairro,
é onde percebemos verdadeiramente o espírito de Clichy: não é europeu, não é
africano, não é asiático, parece que é um pouco tudo isso, mas vive-se junto e
brinca-se junto também. A mim, a Europa parece-me cada vez mais interessada em
dizer que esse não é o caminho, mas em Clichy-sous-Bois as comunidades teimam
em contrariar a ideia de que tal coisa é impossível! E pronto, lá estive eu, a
cristã que faz muitas perguntas, a ser recebida de braços abertos por pessoas
que, de acordo com a maioria dos média, deveriam ser terríveis e assustadoras.
A determinada altura, sentada no meu posto de controlo da
atividade camioneira, uma menina, que tenho a impressão de nunca ter
visto antes mas que de alguma forma sabia que não sou árabe, abordou-me com um
enorme sorriso:
“Sabes? tu pareces uma marroquina.”
“Ai sim? Que bom. Sou uma portuguesa. Tu és uma quê?”
“Sou marroquina!”
“Ah realmente somos parecidas!”
“Se quiseres da próxima vez ensino-te árabe.”
“Gostava muito, mas sabes, hoje é a minha última vez.”
“Então posso-te ensinar agora. As-salam ‘alaykoum c’est bonjour”
E lá tive direito a uma aula de árabe no meu último dia
de animação de rua.
E raros foram os dias em que voltei para
casa sem uma história para contar. Mas cada vez que me acontecia
alguma coisa extraordinária, destas que me aconteceram várias vezes por semana em Clichy-sous-Bois, por ser confrontada com a minha diferença e ignorância em relação a quase tudo o que é normal aqui, tinha que parar para pensar bem se contar a minha
história não ia dar aso a que qualquer outro alguém concluísse exactamente o
oposto do que me aconteceu (normalmente, que os Muçulmanos são isto ou aquilo).
E por isso reservei-as a quem me é mais querido, apesar de as querer gritar ao
mundo, por todo o amor que me inspiram e por todo o carinho que recebi. Este ano
censurei-me muitas vezes: de contar as minhas histórias, de dizer a minha
opinião sobre uma religião que, com algumas regras que eu pessoalmente não compreendo,
me mostrou uma enorme bondade, entrega, carinho e atenção por parte das suas
praticantes (foram sobretudo mulheres que me acompanharam nesta viagem), de
expressar a minha revolta, de esganar pescoços.
Foi especialmente difícil – e eu encravo sempre nesta parte
porque não sei mesmo como colocar por palavras este sentimento –, por perceber
que para continuar a minha luta de trabalhar em prol de uma sociedade mais
solidária, mais comunitária, em que as nossas diferenças não nos afastam (antes
pelo contrário), vou ter que desistir de muita gente. Sempre me assustou esta
ideia, de “desistir” de pessoas, e parece absolutamente incompatível com a luta
a que me proponho: como promover tolerância e respeito se excluímos alguns?
Ainda não descobri a fórmula. Bem, já há muuuito tempo que não acredito em
mudar o mundo, mau era! Mas estou a deixar de ter
a destreza mental, e perdi com certeza toda a vontade, para me pôr no lugar de
quem insulta, agride, julga e acusa porque leu no jornal, porque viu nas
notícias, porque ouviu alguém que ouviu alguém dizer, porque sim,... povos, grupos inteiros, pessoas
anónimas que vivem tranquilamente as suas vidas. Já me era difícil, agora não
consigo. É um tipo de injustiça com a qual estou a desaprender a lidar. A ignorância tem destas coisas: é que há medida que me permito aprender mais e mais, tenho a possibilidade de me tornar seletiva em relação ao que me interessa saber.
Passaram 11 meses e ainda não consigo digerir a loucura
deste ano cheio de emoções. Foi um ano sofrido, sobretudo pelo isolamento que
não consegui ultrapassar. Fez-me falta tudo nos últimos meses do projeto. Sei
que estou mais sombria, sorrio menos. Estar longe das pessoas que amo torna-se
um peso cada vez mais difícil de carregar. Mas cresci, cresci imenso, e vivi
intensamente. Clichy-sous-Bois/Monfermeil, a casa que me acolheu tão
calorosamente, é sem dúvida alguma um dos lugares mais fascinantes e
encantadores que alguma vez irei conhecer, e em Julho de 2014, teria feito tudo
de novo.
Agora começa um novo caminho, fico-me pela França, que ainda
tem muito para me ensinar. Despeço-me de Clichy-sous-Bois e da Ilha de França,
rumo a Estrasburgo. Se tudo correr bem, em breve começo a partilhar as aventuras com o meu amor.
Francisca Amorim
(21/08/2015)
P.S.: se houver interessados/as no Serviço de Voluntariado Europeu estou sempre disponível para informar e ajudar. E mais até: recomendo!